Por sua vez, Yosa indicou que nunca teve dores ou efeitos secundários decorrentes disso. Afastou a existência de quaisquer problemas a nível sexual e indica que teve um parto normal. Na sua óptica, o que está em causa não é uma prática religiosa, tendo em conta que de acordo com o que perguntou relativamente à lei islâmica há opção de escolha. “Se fizermos, tudo bem, mas caso contrário também está tudo bem”, disse, acrescentando que “na Indonésia, em sítios diferentes há culturas distintas. Nalguns locais há uma grande oração e cerimónia se formos circuncisadas, mas na minha terra não é muito relevante”.
Yosa só recentemente soube ter passado pela prática e não sente que conheça essa cultura, daí que a sua filha não tenha sido circuncisada. E acredita que os hábitos estão a mudar. “Antes toda a gente passava por isto, mas agora as pessoas são modernas e não seguem a tradição, por isso já não se faz”, apontou, recordando ter visto nas notícias associações de direitos das mulheres na Indonésia a fazerem campanha contra a circuncisão.
O entendimento internacional
É num tom diferente que as organizações internacionais se referem à prática. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a MGF como todos os procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total da genitália feminina externa ou outras lesões aos órgãos genitais femininos por razões não médicas. A entidade internacional explica que não há qualquer benefício de saúde decorrente do procedimento, mas antes que pode ser prejudicial a raparigas e mulheres de diferentes formas.
As complicações médicas a curto prazo incluem hemorragias, problemas urinários, febre, infecções ou mesmo a morte, enquanto a longo prazo pode gerar problemas como menstruação dolorosa, complicações durante a gravidez ou dores durante relações sexuais. É ainda apontado como um factor para problemas psicológicos, de que é exemplo o stress pós-traumático.
A UNICEF estima que todos os anos mais de três milhões de raparigas pelo mundo correm o risco de serem sujeitas a mutilação genital feminina, com a maioria a ser cortada antes dos 15 anos. “Apesar de ser internacionalmente reconhecida como uma violação aos direitos humanos, a MGF já foi realizada a mais de 200 milhões de raparigas e mulheres actualmente vivas. A prática ocorre em 30 países dispersos por três continentes, com metade [das pessoas sujeitas à prática] a viverem no Egipto, Etiópia e Indonésia”.
Um olhar voltado para a Ásia
A “Asian-Pacific Resource and Research Centre for Women” (ARROW), uma organização não-governamental feminista regional sediada na Malásia, que promove os direitos e saúde reprodutiva e sexual na Ásia-Pacífico juntou forças com uma organização não governamental sediada no Reino Unido, a “Orchid Project”. O objectivo é desenvolver uma rede na Ásia para o combate à MGF.
Esta rede foi lançada em Junho e de acordo com um porta-voz da “Orchid Project” está a passar por uma fase de consulta e consolidação, devendo o trabalho de promoção e colaboração começar em 2020. “As comunidades migrantes podem ser muito influentes no crescimento do movimento contra a mutilação genital feminina. Uma vez que a prática decorre num local em que toda a comunidade tem expectativas de que deve continuar, quando as pessoas são expostas a diferentes normas sociais e vivem em comunidades mais diversas onde não é norma a sujeição a MGF, estão numa posição mais forte para escolher não cortar as suas filhas”, respondeu.
A entidade deu como exemplo o caso do Reino Unido, indicando a existência de um grupo de activistas das comunidades da diáspora, migrantes e refugiados envolvidos em campanhas contra esta prática. Algo que a “Orchid Project” considera demonstrar “o poder de tais comunidades para gerar mudança onde vivem e nos seus países de herança ou origem”.
Tendo em conta os números apresentados pela UNICEF, há ainda caminho a percorrer na Ásia, mas até ao momento a região parece ter estado em segundo plano. “Os dados disponíveis sobre MGF são concentrados na região africana, o que significa que se sabe mais sobre este assunto nesse contexto e consequentemente que tem sido dada mais atenção a acabar com a MGF em países africanos”, explicou Sivananthi Thanenthiran, diretora executiva da ARROW, ao Jornal TRIBUNA DE MACAU.
De acordo com Sivananthi Thanenthiran, as pesquisas feitas até agora são de pequena escala. Um dos exemplos que deu foi de um estudo realizado por um professor associado, em 2012, com 1.196 participantes. “O estudo revelou que 93% das mulheres malaias tinham passado pelo corte, com 83% de quem respondeu a citar razões de obrigação religiosa, 35% propósitos higiénicos, 15% a vontade de controlar o desejo sexual da pessoa e 7% para satisfazer os parceiros”, indicou.
O investigador em causa descobriu também que o procedimento se tornou crescentemente médico, em vez de ser levado num ambiente mais tradicional, tendo a activista comentado que “este desenvolvimento causa desafios adicionais” por poder “erroneamente legitimar a causa como não-prejudicial”.
Abordagem centrada nos direitos humanos
A directora executiva da ARROW, considera que a prática é entendida como sendo cultural, apesar de reconhecer ser frequente as pessoas terem equívocos legitimados por líderes religiosos e de comunidade que acreditam que a MGF é associada à religião. “Mas essencialmente, é uma norma social e uma manifestação da patriarcado, com raízes na necessidade de controlar mulheres e raparigas, o seu corpo e sexualidade. A prática simultaneamente perpetua e é reforçada pela desigualdade de género. Muitos acreditam firmemente que estão a proteger a honra da rapariga ao sujeitá-la ao corte, e que é para o bem estar da família”.
Questionada sobre como é que o tema deve ser apresentado às comunidades, respondeu ser um assunto tabu, pelo que deve ser abordado sem julgamentos, de forma a iniciar uma conversação. “Sabemos através de histórias de sucesso de abandono de MGF, em contexto africano, que um diálogo aberto pode quebrar o silêncio sobre esta prática. Isto permitiu às comunidades partilharem as suas experiências sobre o corte e explorar porque é que o praticam, sendo que em muitos casos escolhem abandoná-lo. Por exemplo, através do trabalho em Tostan, na África Ocidental, cerca de 9.000 comunidades abandonaram MGF, através de uma abordagem focada em direitos humanos dirigida à comunidade”.